segunda-feira, 23 de maio de 2011

A era do intelecto



     São visíveis algumas heranças que recebemos. Umas são bem mais recentes que outras, mas, por certo, nem todas malditas. Dentre elas, cabe destacar o pensamento positivista surgido no início do século XIX, a partir das ideias do francês Augusto Comte, que nos dias atuais campeiam com vigor exagerado.


O positivismo crê na ciência como redentora da humanidade. Assim, afirma que só é verdade o que pode ser comprovado aos nossos olhos e analisado à luz do pensar consciente. Esse modo de ver o mundo é responsável, dentre outras coisas, pelo lema da bandeira brasileira ‘ordem e progresso’, derivado da divisa comteana ‘O Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por meta’, pilares de uma sociedade justa, fraterna e progressista, na visão do filósofo.


Esse ponto de vista desconsidera tudo que possa ser mágico ou sobrenatural, isto é, tudo que não possa ser percebido pelos cinco sentidos que possuímos. Seriam, então, sobrenaturais as invisíveis emoções e os sentimentos? Seria mágico se tivéssemos em nosso corpo órgãos que funcionam alheios à força de nossa consciência, a exemplo das vísceras e coração?


Não subordinar tudo à esfera do pensar traz uma riqueza maior na compreensão da humanidade, pois sabemos que não somos exclusivamente governados pelo pensar consciente. Paralelamente, agimos motivados por emoções e vontades inconscientes que são forças pra lá de influentes, quando não são determinantes. Agir só com a cabeça é agir de maneira fria e lenta.


Hoje valorizamos de forma exagerada a inteligência e o pensar racional. Todos nós declaramos explicitamente o empenho e o desejo de termos os familiares bem aprovados no decadente vestibular. Ver o filho passar no vestibular de medicina ou em outra carreira disputada parece ser a realização da própria educação. Para muitos pais e educadores essa passagem funciona como uma espécie de ‘lavar as mãos’, isto é: fiz a minha parte e agora é com você.


Queremos, acima de tudo, filhos inteligentes. Acreditamos que a racionalidade os fará felizes, harmoniosos, bons, alegres, cheios de virtudes, saudáveis, comunicativos, respeitosos, socialmente responsáveis, honestos, justos, habilidosos, etc. Essa é a falácia da nossa era do intelecto.


Supervalorizamos a formação do pensar e desconsideramos a educação das atitudes e das ações no dia-a-dia pedagógico e familiar. Chega a ser apelativo o enaltecimento da inteligência nos métodos didáticos. Daí, emblematicamente, derivam os quatro pilares da educação para o século XXI da Unesco: aprender a aprender, aprender a conviver, aprender a fazer e aprender a ser. É só ‘aprender’ e ‘aprender’ e ‘aprender’. Isso leva muitas escolas a trabalharem apenas o aprender a aprender e esquivarem-se dos demais saberes.  


Não muito distante dessa prática, encontramos outro trabalho muito citado por educadores e consultores, que versa sobre a inteligência emocional,  defendida por Daniel Goleman. Novamente a inteligência suprema manda no resto. Será que é assim mesmo? O apelo ao dom da inteligência se repete no projeto ‘Escola da Inteligência’ de Augusto Cury, nas inteligências múltiplas de Howard Gardner, na inteligência social de Robert Thorndike, dentre outros. Afinal, queremos participar ativamente da sociedade da informação e da economia do conhecimento, nas quais impera a inteligência.


Reconheço que exagerei na forma como expus acima a crítica aos trabalhos de nobres autores. Mas, a intenção se limita a demonstrar o quanto somos seduzidos pela palavra inteligência. Por certo, essa apologia ao intelecto corresponde ao desequilibrado modelo de desenvolvimento vigente, no qual, um jovem que baixa livros e músicas ilegalmente pela internet é avaliado como gênio, ainda que esteja praticando um crime.


Também assistimos agora à curiosa situação: ao mesmo tempo em que a França consegue com altíssima tecnologia resgatar a quatro mil metros de profundidade no Atlântico as caixas-pretas do avião da Air France acidentado em 2009, tem seu candidato maior a Presidente da República preso, acusado de comportamento sexual criminoso em Nova York. Parece que a verdadeira caixa-preta é o próprio homem.


Se já educamos perfeitamente o pensar para os desafios tecnológicos da engenharia genética, das missões espaciais, das profundezas marinhas, da nanotecnologia e demais maravilhas contemporâneas, por certo, devemos, de igual forma, educar nossas atitudes e ações a fim de plasmarmos mais integralmente o ser humano em suas diversas faculdades. Se assim não agirmos, a tecnologia será apenas um adorno a embelezar nosso fracasso comum.    




Publicado no jornal Cinform 23/05/2011 – Caderno Emprego
Publicado na revista Tecnologia da Informação & Negócios nº 02/2011



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