segunda-feira, 3 de junho de 2013

O Ser humano e o Ter humano


Já cansado de saber acerca dos excessos da nossa sociedade de consumo e do modo que (ab)usa dos recursos naturais disponíveis, o homem moderno, às vezes, nem parece digno de descender do macaco. Com efeito, nessa mesma época do ápice da inteligência e da racionalidade, o ser humano é capaz de manifestar uma preocupante atrofia do bom senso e dos valores universais, ruborizando a face dos evolucionistas.

 Os sinais de enfraquecimento do tecido social são pronunciados. A banalização da violência, o descuido com a educação dos filhos, a queda dos padrões de ensino e aprendizado, o descarte de produtos e pessoas como hábito cotidiano comum, a frouxidão ao orientar os jovens, principalmente pela falta do exemplo e de coerência entre o que se diz e o que se faz. Além de outras mazelas que fazem de nossa sociedade um espaço em que prioridades individuais possam superar as de interesse coletivo.

Parece que confundimos a construção do livre-arbítrio – individuação ou consciência de si – com o individualismo, expressão do egoísmo. Nesse último, prevalece a “lei do Gerson”, aquela que nos orienta a levar vantagem em tudo. Como consequência, próximo de fazer 100 anos, Macunaíma, o herói sem caráter, representante underground do brasileiro, exibe um vigor de menino em nossas paragens. Quem sabe, o crescimento notável da expectativa de vida brasileira tenha beneficiado a todos, indistintamente?

Mario Cortella, no livro “Qual a Sua Obra?”, conta que em 1974, dois caciques Xavantes saíram de suas aldeias e foram à cidade de São Paulo. Naturalmente que ficaram chocados com certas obras como o Metrô e as catedrais financeiras da Avenida Paulista. Levados a um dos dois shoppings existentes, mostraram-se indignados com a quantidade de espelhos disponíveis em todos os cantos do centro comercial. E cita: “Eles achavam inacreditável que, num mundo cheio de gente, a gente gostasse de se ver, em vez de ver o outro. Se você estava com você o tempo todo, por que ia querer se ver? Esse excesso de espelho é um símbolo ético também”.

Pouco depois, Caetano Veloso deu a resposta emblemática com a música Sampa, versando: “É que Narciso acha feio o que não é espelho”. Desse modo, o poeta fecha a questão enaltecendo o espírito narcisista e consumista da sociedade brasileira, capitaneada por São Paulo e seus mais de setenta shoppings bem-espelhados, hoje.    

Tropeçando nos astros, humanos migram seus valores do Ser para o Ter, o que leva a sociedade a se agigantar na direção inversa: de Ter uma economia de mercado para Ser uma sociedade de mercado.

A diferença é esta: uma economia de mercado é uma ferramenta valiosa e eficaz da atividade produtiva. Uma sociedade de mercado é um modo de vida em que os valores de mercado permeiam cada aspecto da atividade humana. É um lugar em que as relações sociais são reformatadas à imagem do mercado. Assim, ensina o professor de Harvard, Michael Sandel, no livro dele: “O Que o Dinheiro Não Compra”.

Enquanto permitirmos fazer da criança “a alma do negócio”, cultuarmos em procissão as vitrines dos shoppings, adorarmos marcas e deixarmos nos seduzir por cartões de crédito, pouco emancipados seremos. No afã de exibirmos um carro superior ao do vizinho, nos escravizamos num ritual inseguro de endividamento e distorção de valores, fazendo da compra do bem um mau negócio. Segundo uma visão antropológica, o consumo é cultural e os produtos e serviços possuem significados. Mesmo que não tenhamos consciência, quando compramos algo estamos falando para o outro sobre nós mesmos. Assim, o consumismo no país é visto de maneira negativa e se caracteriza quando o indivíduo compra mais do que pode, quando há exagero e falta limite. Ato que nos torna economicamente vulneráveis pela redução da poupança e endividamento geral.

Se, é incerta a origem do Ser humano a partir da evolução animal ou diretamente do barro, com o Ter humano a situação é outra: ele surge da quebra inapropriada de um animal de barro, o porquinho-mealheiro.


          Publicado no jornal Cinform em 03/06/2013 - Caderno Emprego


Um comentário:

  1. Gostei muito do texto Sr. Paulo, sempre fica ótimo quando cita comentários de outras pessoas sobre o assunto no seu texto.

    O penúltimo parágrafo é a mais pura realidade no Brasil, irei indicar para uns amigos que tem a fraqueza citada que leiam principalmente este.

    Boa Visão.

    Um abraço :)

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